Do livro O homem que calculava de TAHN, Malba.
(...)e, entre os mortos da batalha no oriente, com o peito varado por uma flecha, lá ficou no campo de combate o príncipe Adjamir, filho do rei Iadava (...)
Terminada a cruenta campanha e assegurada a nova linha de suas fronteiras, regressou o rei ao suntuoso palácio (...). Com o andar dos dias, longe de se apagarem as lembranças da penosa campanha, mais se agravaram a angústia e a tristeza que, desde então, oprimiam o coração do rei. De que lhe poderiam servir, na verdade, os ricos palácios, os elefantes de guerra, os tesouros imensos, se já não mais vivia a seu lado aquele que fora sempre a razão de ser de sua existência? Que valor poderiam ter, aos olhos de um pai inconsolável, as riquezas materiais que não apagam nunca a saudade do filho estremecido?
As peripécias da batalha em que pereceu o príncipe Adjamir não lhe saíam do pensamento. O infeliz monarca passava longas horas traçando, sobre uma grande caixa de areia, as diversas manobras executadas pelas tropas durante o assalto. Com um sulco indicava a marcha da infantaria; ao lado, paralelo ao primeiro, outro traço mostrava o avanço dos elefantes de guerra; um pouco mais abaixo, representada por pequenos círculos dispostos em simetria, perfilava a destemida cavalaria chefiada por um velho "radj" que se dizia sob a proteção de Techandra, a deusa da Lua. Ainda por meio de gráficos esboçava o rei a posição das colunas inimigas desvantajosamente colocadas, graças à sua estratégia, no campo em que se feriu a batalha decisiva.
Uma vez completado o quadro dos combatentes, com as minudências que pudera evocar, o rei tudo apagava, para recomeçar novamente, como se sentisse íntimo gozo em reviver os momentos passados na angústia e na ansiedade.
(...)Um dia, afinal, foi o rei informado de que um moço brâmane - pobre e modesto - solicitava uma audiência que vinha pleiteando havia já algum tempo. Como estivesse, no momento, com boa disposição de ânimo, mandou o rei que trouxessem o desconhecido à sua presença.
Conduzido à grande sala do trono, foi o brâmane interpelado conforme as exigências da praxe por um dos vizires do rei.
- Quem és, de onde vens ?
- Meu nome - respondeu o jovem brâmane - é Lahur Sessa e venho da aldeia de Namir, que trinta dias de marcha separam desta bela cidade. Ao recanto em que eu vivia chegou a notícia de que o nosso bondoso rei arrastava os dias em meio de profunda tristeza, amargurado pela ausência de um filho que a guerra viera roubar-lhe. Grande mal será para o país, pensei, se o nosso dedicado soberano se enclausurar, como um brâmane cego, dentro de sua própria dor. Deliberei, pois, inventar um jogo que o pudesse distrair e abrir em seu coração as portas de novas alegrias. É esse o desvalioso presente que desejo neste momento oferecer ao nosso rei Iadava.
O que Sessa trazia ao rei Iadava consistia num grande tabuleiro quadrado dividido em sessenta e quatro quadradinhos ou casas iguais: sobre esse tabuleiro colocavam-se, não arbitrariamente, duas coleções de peças que se distinguiam uma da outra pelas cores branca e preta, repetindo, porém, simetricamente os engenhosos formatos e subordinados a curiosas regras que lhes permitiam movimentar-se por variados modos.
Sessa explicou pacientemente ao rei, aos vizires e aos cortesãos que rodeavam o monarca em que consistia o jogo, ensinando-lhes as regras essenciais:
- Cada um dos partidos dispõe de oito peças pequeninas - os peões. Representam a infantaria que ameaça avançar sobre o inimigo para desbaratá-lo. Secundando a ação dos peões vêm os elefantes de guerra representados por peças maiores e mais poderosas; a cavalaria, indispensável no combate, aparece igualmente no jogo, simbolizada por duas peças que podem saltar, como dois corcéis, sobre as outras; e, para intensificar o ataque, incluem-se - para representar os guerreiros cheios de nobreza e prestígio - os dois vizires do rei. Outra peça, dotada de amplos movimentos, mais eficiente e poderosa do que as demais, representará o espírito de nacionalidade do povo e será chamada a rainha. Completa a coleção uma peça que isolada pouco vale, mas se torna muito forte quando amparada pelas outras: é o rei.
O rei Iadava, interessado pelas regras do jogo, não se cansava de interrogar o inventor:
- E por que é a rainha mais forte e mais poderosa que o próprio rei?
- Mais poderosa - argumentou Sessa - porque a rainha representa, nesse jogo, o patriotismo do povo. A maior força do trono reside principalmente na exaltação de seus súditos. Como poderia o rei resistir ao ataque dos adversários se não contasse com o espírito de abnegação e sacrifício daqueles que o cercam e zelam pela integridade da pátria?
Dentro de poucas horas o monarca, que aprendera com rapidez todas as regras do jogo, já conseguia derrotar os seus dignos vizires em partidas que se desenrolavam impecáveis sobre o tabuleiro. Sessa, de quando em quando, intervinha respeitoso, para esclarecer uma dúvida ou sugerir novo plano de ataque ou de defesa.
Em dado momento o rei fez notar, com grande surpresa, que a posição das peças, pelas combinações resultantes dos diversos lances, parecia reproduzir exatamente a batalha de Dacsina.
- Reparai - ponderou o inteligente brâmane - que para conseguirdes a vitória indispensável se torna de vossa parte o sacrifício deste vizir! - E indicou precisamente a peça que o rei Iadava no desenrolar da partida - por vários motivos, grande empenho pusera em defender e conservar.
O judicioso Sessa demonstrava desse modo que o sacrifício de um príncipe é, por vezes, imposto como uma fatalidade, para que dele resultem a paz e a liberdade de um povo.
Ao ouvir tais palavras exclamou o rei Iadava sem ocultar o entusiasmo que lhe dominava o espírito:
- Não creio que o engenho humano possa produzir maravilha comparável a este jogo interessante e instrutivo! Movendo essas tão simples peças, aprendi que um rei nada vale sem o auxílio e a dedicação constante de seus súditos. E que às vezes o sacrifício de um simples peão vale mais, para a vitória, do que a perda de uma poderosa peça.
E, dirigindo-se ao jovem brâmane, disse-lhe:
- Quero recompensar-te, meu amigo, por este maravilhoso presente, que de tanto me serviu para alívio de velhas angústias. Dize-me, pois, o que desejas para que eu possa mais uma vez demonstrar o quanto sou grato àqueles que se mostram dignos de recompensa.
(...)- Recusar o vosso oferecimento depois de vossas últimas palavras - acudiu Sessa - seria menos descortesia do que desobediência ao rei. Vou, pois, aceitar pelo jogo que inventei uma recompensa que corresponde à vossa generosidade; não desejo, contudo, nem ouro, nem terras ou palácios. Peço o meu pagamento em grãos de trigo.
- Grãos de trigo? - exclamou o rei, sem ocultar o espanto que lhe causava semelhante proposta. - Como poderei pagar-te com tão insignificante moeda?
- Nada mais simples - elucidou Sessa. – Dar-me-eis um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro; dois, pela segunda; quatro, pela terceira; oito, pela quarta; e, assim dobrando sucessivamente, até a sexagésima quarta e última casa do tabuleiro. Peço-vos, ó rei!, de acordo com a vossa magnânima oferta, que autorizeis o pagamento em grãos de trigo, e assim como indiquei!
Não só o rei como os vizires e venerandos brâmanes presentes riram-se, estrepitosamente, ao ouvir a estranha solicitação do jovem. A desambição que ditara aquele pedido era na verdade de causar assombro a quem menos apego tivesse aos lucros materiais da vida. O moço brâmane, que bem poderia obter do rei um palácio em uma província, contentava-se com grãos de trigo!
Mandou o rei chamar os algebristas mais hábeis da corte e ordenou-lhes que calculassem a porção de trigo que Sessa pretendia.
Os sábios matemáticos, ao cabo de algumas horas de acurados estudos, voltaram ao salão para submeter ao rei o resultado completo de seus cálculos.
Perguntou-lhes o rei, interrompendo a partida que então jogava:
-Com quantos grãos de trigo poderei afinal desobrigar-me da promessa que fiz ao jovem Sessa?
- Rei magnânimo - declarou o mais sábio dos geômetras. - Calculamos o número de grãos de trigo que constituirá o pagamento pedido por Sessa e obtivemos um número cuja grandeza é inconcebível para a imaginação humana. Avaliamos em seguida, com o maior rigor, a quantas ceiras corresponderia esse número total de grãos e chegamos à seguinte conclusão: a porção de trigo que deve ser dada a Lahur Sessa equivale a uma montanha que, tendo por base a cidade de Taligana, seria cem vezes mais alta do que o Himalaia! A Índia inteira, semeados todos os seus campos, taladas todas as suas cidades, não produziria, num século, a quantidade de trigo que, pela vossa promessa, cabe em pleno direito ao jovem Sessa!
Como descrever aqui a surpresa e o assombro que essas palavras causaram ao rei Iadava e a seus dignos vizires? O soberano hindu via-se, pela primeira vez, diante da impossibilidade de cumprir a palavra dada.
Lahur Sessa - rezam as crônicas do tempo - como bom súdito não quis deixar aflito o seu soberano. Depois de declarar publicamente que abria mão do pedido que fizera, dirigiu-se respeitosamente ao monarca e assim falou:
- Meditai, ó Rei!, sobre a grande verdade que os brâmanes prudentes tantas vezes repetem: os homens mais avisados iludem-se, não só diante da aparência enganadora dos números, mas também com a falsa modéstia dos ambiciosos. Infeliz daquele que toma sobre os ombros o compromisso de uma dívida cuja grandeza não pode avaliar com a tábua de cálculo de sua própria argúcia. Mais avisado é o que muito pondera e pouco promete!
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